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Em Defesa do Advocacy Digital e da Retórica

Questionamentos recentes, inclusive por autoridades do governo, sobre as ações de advocacy digital das big techs têm amplas implicações para o livre debate de políticas públicas. Escrevi um livro sobre o advocacy digital, e nele mostro como as redes sociais contribuíram para a democratização do lobby. Plataformas como Twitter, Telegram, YouTube e Instagram deram voz coletiva ao cidadão, que encontrou nas redes sociais uma ferramenta efetiva para influenciar diretamente as políticas públicas de seu interesse. Corre-se o risco agora de um passo para trás.


É que o cidadão não acompanha a agenda legislativa ou regulatória, e o advocacy digital -- por empresas, ONGs, entidades de classe, celebridades, sindicatos e parlamentares -- cumpre um papel importante ao trazê-lo para a conversa. Engajar o cidadão não é fácil e normalmente segue três etapas. Primeiro é preciso chamar a sua atenção ao tema, depois fazer com que execute uma ação e por último convencê-lo a compartilhar a mensagem com a sua rede. O objetivo é persuadir o maior número de pessoas a pressionar o poder público. Para isso são utilizadas palavras e imagens que de imediato comunicam uma ideia e incitam uma reação emocional. Um exemplo é o PL do Veneno, que associa a discussão sobre agrotóxicos à morte, não só no nome, mas também em imagens como a de um prato de comida com uma caveira. Outro é o PL do Retrocesso, que invoca uma volta ao passado e imagens que lembram a censura.


A retórica é tática comum para chamar a atenção do cidadão. Difícil é definir o que é ou não é aceitável. Por exemplo, durante a discussão em torno do Brexit, partidários contrários a permanência da Inglaterra na União Européia criaram slogans de teor xenofóbico. Neste caso não tenho dúvida. A mensagem é falsa e perigosa, pois incita o racismo e a violência. No entanto, para chamar a atenção da sociedade sobre o PL do Veneno, uma influencer gravou um vídeo em que ela borrifa inseticida numa maçã e a oferece ao espectador para exemplificar o que seria (na visão dela) comer um produto com agrotóxico (ou defensivo agrícola, dependendo de que lado você está deste debate). Falso? Uma retórica exagerada? Verdade? Neste caso, a resposta já não é tão óbvia assim.


Quando comecei a escrever meu livro usei um caso nos EUA de pouco mais de dez anos atrás que mostra a lógica do lobby digital. De 2011 para 2012 se discutia no Congresso Norte Americano dois PLs que tratavam da pirataria online. Os projetos tinham como alvo sites no exterior supostamente envolvidos na violação de direitos autorais e de marcas. A favor dos PLs pesos pesados como a Motion Picture Association, PhRMA, Câmara de Comércio Norte Americana e até a AFL-CIO, a CUT dos EUA. Do outro lado a sociedade civil que acreditava que os PLs poderíam resultar no bloqueio de sites legítimos, reduzir a liberdade de expressão e por em risco a criatividade e liberdade na internet. Uma pequena ONG começou a mobilização, criando a campanha "American Censorship Day" ou "Dia da Censura Americana" que consistia de um dia de protestos online com uma expressão gráfica nos sites dos participantes. Isto é, a ONG enquadrou o PL sobre direitos autorais como uma questão de liberdade de expressão. O movimento foi ganhando força até que o Reddit decidiu por um blackout total de seu site por um dia. Na sequência, Google e Wikipedia aderiram ao protesto. A Wikipedia decidiu por um blackout global de seus sites em inglês e o Google cobriu seu logo com uma tarjeta preta e os dizeres: "Diga ao Congresso: por favor não censure a web" com um link para informações sobre os PLs e uma petição online. O apoio e alcance das ações do Reddit, da Wikipedia e do Google ajudaram a mobilizar a sociedade e derrubar os dois PLs.


Muita coisa mudou nos últimos dez anos, de como vemos as plataformas online até o surgimento das fake news, mas o caso acima ilustra a origem e algumas das práticas comuns do advocacy digital que persistem até hoje. Por exemplo: em 2018, a empresa de material esportivo Patagonia também usou sua homepage nos EUA para comunicar à sociedade sua posição quanto a tentativa do então Presidente Trump de reduzir o tamanho de um parque nacional. Contra um fundo preto o site da empresa dizia: "O presidente roubou a sua terra." Foi ilegal a Patagonia usar sua homepage para se posicionar contra uma ação do governo Trump com a qual não concordava? Acredito que não.


O Google foi criticado por incluir na sua homepage a seguinte chamada: "O PL das fake news pode aumentar a confusão sobre o que é verdade ou mentira no Brasil". O link levava ao posicionamento da empresa no seu blog. As reações do poder público foram fortes e causam confusão. A chamada na homepage foi considerada "publicidade" pelo Ministro da Justiça Flávio Dino e de "propaganda abusiva" pela Senacom. O posicionamento da empresa virou, nas palavras do Ministro, "editorial". Para cada hora em que a chamada permanecesse na homepage a Senacom determinou que a empresa teria que pagar multa de R$1 milhão. A empresa retirou a mensagem da homepage e está sob investigação criminal.


Na sua decisão contra o Telegram, que também se posicionou contra o PL, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes escreveu que "A mensagem enviada pelo "TELEGRAM tipifica FLAGRANTE e ILÍCITA DESINFORMAÇÃO atentatória ao Congresso Nacional, ao Poder Judiciário, ao Estado de Direito e a Democracia Brasileira, pois, fraudulentamente, distorceu a discussão e os debates sobre a regulação …. "


Os exemplos anteriores mostram como é difícil definir objetivamente o que vem a ser um posicionamento que "fraudulentamente distorce" ou que seja "ilícita desinformação" e distiguir entre a desinformação e uma retórica agressiva. Além do mais, quando se discute política pública -- que pela sua própria natureza envolve cenários futuros -- fica difícil precisar quais serão de fato as consequências de uma nova medida. Estas somente se tornarão óbvias anos depois de implementadas. Hoje, resta a cada lado do debate trazer sua visão do que este cenário poderá ser e tentar expor eventuais exageros ou falsidades pelo outro lado.


O caso do PL das Fake News e a forte reação do executivo e judiciário podem fazer com que empresas no Brasil pensem duas vezes antes de se posicionarem publicamente sobre um projeto de lei ou regulação do seu interesse, ou de chamarem o cidadão a ação, caso sua posição não esteja alinhada a do governo. Acaba-se com a transparência do lobby que tantos desejam. As críticas e ações do governo estabeleceram um precedente preocupante. Não é possível mirar as práticas (link na homepage) e a retórica de algumas empresas e limitar estes entendimentos a elas. O entendimento valerá para todos -- empresas, terceiro setor, entidades de classe, influencers, celebridades, experts, sindicatos, … que usam a retórica e sua presença online para chamar a atenção do cidadão.


No livro o Paradoxo da Democracia, Zac Gershberg e Sean Illing argumentam que democracias dependem de um ambiente de comunicação aberto, onde a retórica e a persuasão são fundamentais. Mas esta liberdade (de expressão) pode ser abusada quando a demagogia e o populismo ameaçam a própria democracia. Este é o paradoxo ao qual os atores se referem no título do livro e que nunca foi resolvido. Esforços para endereçar chamadas e mensagens que possam minar a democracia ou incitar a violência são importantes. No entanto, deve-se evitar ao máximo criar um ambiente que possa coibir a livre expressão e reduzir a participação do cidadão no debate de políticas públicas. Se por um lado a livre expressão pode ameaçar a democracia, por outro, a sua ausência trará o mesmo resultado.


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